Quando se fala sobre o Vaticano na época da Segunda Guerra Mundial, dificilmente o nome Papa Pio XII sai da mesa. O pontífice, que comandou a Igreja de 1939 a 1958, ainda hoje gera debates acalorados: teria sido cúmplice dos nazistas ou teria agido nos bastidores para proteger vítimas do Holocausto?
Em 1999 o jornalista britânico John Cornwell lançou o livro Hitler's Pope: The Secret History of Pius XII. O autor coloca o papa como arrogante estrategista que, como secretário de Estado, negociou o Reichskonkordat de 1933 para legitimar o regime de Adolf Hitler. Segundo Cornwell, todo o pontificado de Pio XII seria guiado por um desejo de centralizar o poder papal, o que o faria fechar os olhos para o genocídio dos judeus.
Para reforçar a tese, Cornwell cita supostas declarações antissemitas e argumenta que o silêncio do pontífice teria permitido que os nazistas prosseguissem com seus crimes. O livro causou grande comoção, reavivando críticas que já surgiam desde o fim da guerra.
Vários historiadores contestam a narrativa de Cornwell. O especialista em Holocausto Martin Gilbert, por exemplo, destaca que forças de segurança nazistas se referiam ao papa como "boca dos criminosos de guerra judeus", indicando que os próprios nazistas o viam como adversário.
Documentos de guerra revelam que, entre 1940 e 1941, Pio XII colaborou secretamente com a resistência alemã. Ele manteve contato com o coronel Hans Oster, da Abwehr, e com o advogado católico Josef Müller, que fazia viagens clandestinas a Roma para receber apoio papal em planos de derrubar Hitler. Essa rede também incluía o representante britânico Francis d'Arcy Osborne, que servia como canal de comunicação entre a resistência e o Vaticano.
Além disso, o papa enviou avisos a governos aliados sobre a invasão alemã planejada para 10 de maio de 1940, alertando Bélgica e Holanda. Os nazistas consideraram isso espionagem, o que demonstra que as ações de Pio XII eram vistas como ameaças ao seu regime.
Sobre a perseguição aos judeus, em 1940 Pio XII escreveu, em papel timbrado do Vaticano, instruções claras aos padres: fazer tudo ao alcance para ajudar os judeus internados. A comunidade judaica de Roma, reconhecendo esses esforços, instalou uma placa no Museu da Libertação de Roma em homenagem ao pontífice.
O reconhecimento internacional não demorou a chegar. Em dezembro de 1940, Albert Einstein elogiou o papa em uma entrevista ao Time. Já em dezembro de 1942, o New York Times afirmou que a voz de Pio XII era "a única voz na escuridão que envolve a Europa neste Natal".
São poucos os registros que mostram a postura de Eugenio Pacelli, antes de se tornar papa, contra Hitler. A irmã Pascalina Lehnert, que trabalhou ao seu lado, lembrou que Pacelli o descreveu como "um homem completamente exaltado, capaz de pisar sobre cadáveres e eliminar tudo que se oponha a ele". Ele questionava como havia quem não percebesse a insanidade de Hitler.
Apesar desse posicionamento pessoal, durante a guerra Pio XII adotou uma diplomacia de neutralidade pública, evitando nomear diretamente os nazistas como responsáveis pelos horrores. Defensores argumentam que uma condenação aberta teria provocado retaliações ainda mais brutais contra católicos e judeus nos territórios ocupados.
Contudo, seu esforço pela paz gerou controvérsias. Quando Inglaterra e França prometeram apoiar a Polônia, o papa pediu que o país cedesse a algumas exigências alemãs para evitar a guerra. Alguns interpretam isso como um favorecimento à estratégia de Hitler, embora a intenção declarada fosse preservar a paz na Europa.
Mesmo com a invasão da Polônia em setembro de 1939, Pio XII continuou a dialogar com movimentos de resistência até o fim do conflito, mantendo canais de comunicação que ajudaram a salvar vidas.
O legado do pontífice ainda está em disputa. O processo de canonização começou em 1965, e ele foi declarado Servo de Deus em 1990 por João Paulo II, avançando para Venerável em 2009 sob o papado de Bento XVI. Documentos recentemente divulgados por historiadores como David Kertzer sugerem que o papa era "nem o monstro antissemita chamado Papa de Hitler, nem o herói glorificado".
Essa visão equilibrada destaca como líderes religiosos enfrentam dilemas morais extremados quando o mundo se afunda no mal. A história de Pio XII nos lembra que, muitas vezes, julgamentos definitivos são difíceis quando se trata de decisões tomadas sob ameaça constante e em tempos de guerra total.